Mesa-redonda
sobre o livro “A outra praia” do escritor argentino Gustavo Nielsen, junto com
Henrique Schneider, na 58º Feira do Livro de Porto Alegre, em 2 de novembro de
2012:
Boa-noite a todos. Gostaria de começar a minha fala agradecendo o convite da Jussara Rodrigues e Sandra La Porta, amigas queridas de muitos anos, para participar desta mesa-redonda e cumprimentar o Gustavo Nielsen e o Henrique Schneider também.
Boa-noite a todos. Gostaria de começar a minha fala agradecendo o convite da Jussara Rodrigues e Sandra La Porta, amigas queridas de muitos anos, para participar desta mesa-redonda e cumprimentar o Gustavo Nielsen e o Henrique Schneider também.
Já tive o
privilegio de apresentar outros escritores latino-americanos nesta feira e alguns
escritores argentinos como Tomás Eloy Martínez, Federico Andahazy, Alicía
Dujovne Ortiz, Griselda Gambaro, Martín Kohan, Ana Maria Shua, Daniel Link,
Luiz Guzmán, Pablo de Santis, entre outros. E sou, como não podia deixar de
ser, uma apaixonada pela literatura argentina, desobedecendo a máxima de um
professor da Unicamp que disse uma vez, referindo-se às rivalidades entre
brasileiros e argentinos que a equação para compreender estas picuinhas seria
mais ou menos assim: os argentinos odeiam amar os brasileiros e os brasileiros
amam odiar os argentinos, pra dizer que tudo isto se trata, no fundo de uma
grande e recíproca admiração e identificação.
Foi, portanto,
com imensa alegria que conheci o romance do Gustavo e vou falar brevemente
sobre ele, para que vocês possam, a seguir, ouvi-lo, que afinal, é para isto
que estamos aqui hoje.
Soube que o
Gustavo tem outros livros publicados, foi agraciado com vários prêmios
literários e que este, ora traduzido para o português, que se chama “A outra
praia” ganhou em 2010, o importante Prêmio Clarín. Ele mesmo poderá nos contar
um pouco mais e melhor sobre a sua trajetória, a seguir.
Vou fazer uma
breve confissão pessoal. O que eu mais gosto nestas reuniões com escritores e
leitores para falar sobre literatura, é que a gente pode se reunir para mentir
um pouco. Porque falar de ficção com escritores e leitores pressupõe um pacto
de mentirosos, de gente que gosta de inventar e de gente que gosta de
acreditar. Portanto, se vocês não acreditarem no que vou contar, não tem
problema.
Recebi o livro
do Gustavo há algumas semanas e na noite que comecei a lê-lo caiu uma
tempestade em Brasília, onde moro atualmente, daquelas tempestades maravilhosas,
depois de três meses de seca. Imediatamente a cidade ficou sem luz e comecei a
ler o romance num arquivo eletrônico no notebook, rezando para que a bateria
não acabasse, e contando somente com a luz do computador. Foi uma experiência
completamente lúdica e assustadora pra mim e a luz voltou no momento exato em
que terminei a leitura. Uma experiência assustadora porque a história do
romance, e isto eu não sabia de antemão, é uma história de fantasmas. Terminei a
leitura com o coração na mão, e sem a menor possibilidade de interrompê-la
porque este é um daqueles relatos que depois que a gente começa é impossível parar.
E esta
informação nos permite dizer que Gustavo Nielsen, neste romance se filia a uma
tradição literária e latino-americana das mais importantes, a do fantástico, e
suas relações com o realismo mágico, com o real maravilhoso e tudo o que isto
significou na história da nossa literatura do sul.
Gostei de
lembrar a maneira como Adolfo Bioy Casares começa o Prólogo à Antologia de la Literatura fantástica:
“Viejas como el miedo, las ficciones fantásticas son anteriores a las letras.”
E também reli
com prazer os textos em que Cortázar sintetizou suas percepções sobre este tipo
de literatura ao qual ele também se filiou. Falo da conferência El sentimento de lo fantástico e,
principalmente O Estado Atual da
Narrativa na América Hispânica, talvez seu ensaio mais exaustivo e
esclarecedor sobre o tema. Onde ele considera o fantástico como uma temática e
um procedimento recorrentes em autores da zona cultural do Rio da Prata num
período que vai de 1920 até a atualidade. E que tal procedimento se daria por
um mecanismo do acaso, o mesmo acaso que, por exemplo, juntou, concentrou, na
época da Renascença italiana ou em outros períodos da história, uma explosão
criativa com características próprias.
O sentimento do
fantástico seria, para Cortázar, um estranhamento originado das coisas banais
da vida e do cotidiano. Longe de se tratar de situações fantasmagóricas e
sobrenaturais, de lobisomens ou vampiros, o fantástico seria um estranhamento
capaz de romper com o binarismo do racional e irracional, e que se instalaria
como uma zona intermediária, uma ponte entre vários caminhos. Seria um espaço
intersticial, de uma terceira fronteira, de um terceiro olho:
(...)
O fantástico e o misterioso não são somente as grandes imaginações do cinema,
da literatura, os contos ou os romances. Está presente em nós mesmos, naquilo
que é o nosso psiquismo e que nem a ciência e nem a filosofia conseguem
explicar sem ser de uma maneira primária e rudimentar.[1]
E fala de
(...)
Um sentimento de estar imerso num mistério continuo, do qual o mundo que
estamos vivendo neste instante é somente uma parte, este sentimento não tem
nada de sobrenatural, nem de extraordinário, precisamente quando aceitamos,
como eu o fiz, com humildade, com naturalidade, é então quando podemos
captá-lo, que podemos recebe-lo multiplicadamente com mais força; eu diria,
mesmo que isto possa escandalizar espíritos positivos ou positivistas, eu diria
que disciplinas como a ciência e a filosofia estão nos umbrais da explicação da
realidade, mas não explicaram toda a realidade, a medida que avança no campo
filosófico ou no científico, os mistérios vão se multiplicando, e na nossa vida
interior é exatamente a mesma coisa.[2]
Os personagens
de Nielsen também discutem sobre a existência de uma realidade para além da
realidade dada, citam a Teoria do órgão dos sonhos, da máquina interior que nos
dá as imagens para sonhar (p.70), citações de Shopenhauer, ou sobre a
existência de uma pré-cognição, numa tentativa de entendimento ou mesmo de
convencimento do que está acontecendo, mas o que nos convence por completo da
existência desta outra realidade inexplicável é estratégia perfeita escolhida
pelo autor para nos contar a sua história.
Porque é
impossível, ao ler A outra praia, não
lembrar de textos magistrais como La casa inundada, de Felizberto
Hernández, Lejana, de Júlio Cortázar
ou mesmo La invención de Morel, de
Adolfo Bioy Casares. E Nielsen honra devidamente esta linhagem criando um
relato inesquecível.
Como na maioria
das boas histórias fantásticas, aqui também aparecem todos os elementos
sugeridos por Adolfo Bioy Casares, no Prólogo
a la Antología de la literatura fantástica, quando enumera a importância
dos elementos que caracterizam este tipo de narrativa: o ambiente ou
atmosfera, a surpresa, a enumeração dos
argumentos fantásticos, os fantasmas, as viagens no tempo, as metamorfoses, as
ações paralelas que obram por analogia, o tema da imortalidade, dos pactos, as
fantasias metafísicas, etc. Tudo isto e mais encontramos aqui, e mais uma dose
de humor deliciosa para contar aquilo que é em síntese o tema do romance: uma
história de amor.
Dois casais de
amigos – Antonio e Marta e Zopi e Sara – assistem uma projeção de slides de
desconhecidos – um casal que eles batizam como Cacho e tia Alícia –
supostamente viajando de féria pelo Brasil, em Curitiba talvez.
Comem pizza e
olham os slides e inventam uma vida para os personagens desconhecidos. Os
slides foram comprados por Sara em duas ocasiões diferentes, uma na Feira de
Pompeya e outra, um mês depois, no Exército da Salvação e contam com um total
de 377 fotos.
Antonio pondera
que pela cor do filme pareceriam as revelações de antes de 78 quando a Kodak importou para o país uma nova química
que evitava o envelhecimento prematuro das cores e cogitam se os personagens
teriam sido mortos pela ditadura ou perdido as fotos numa fuga precipitada para
o exílio. É o único dado histórico do relato, e questionamos a relevância deste
dado já que numa história de fantasmas o tempo é, na verdade, uma grande
artimanha.
Antonio é
fotógrafo e suas reflexões sobre o ofício e como ele o vive vão ser da maior
importância nesta história de projeções, luzes, sombras, ocultações e
revelações. Porque, podemos dizer, sem dúvidas, que as reflexões dele sobre o
processo de revelação poderiam ser as reflexões de um narrador às voltas com
seus personagens. O fotógrafo, como um narrador, seria mais um ressuscitador do
que um voyeur: “Iluminados pela luz
do projetor, aqueles mortos haviam regressado à vida”, cito da pag. 18.
Na sequência dos
fatos, Antonio, que vive uma espécie de crise de meia idade, questionando seu
casamento e seu trabalho, sai na rua e encontra uma moça num café a quem lhe
atrai um sentimento, ao mesmo tempo de familiaridade e estranheza, ele a
fotografa repetidamente e depois fica encantado com o que sente ao ver as
fotos.
As pessoas e os
objetos fotografados, de uma moça que parecia saber que estava sendo
fotografada, são, para além deles mesmos, a memória do que poderiam ter sido e
não foram.
Cito da pag. 40:
“A revelação era o próprio ato da aparição, o que mais lhe agradava em todo o
processo. As figuras se aproximavam de seu olhar como que surgindo da
profundidade de um reservatório.”
Revelar e
aparecer criam analogias entre criar, narrar, revelar, dar existência. Ele dá
um nome à moça desconhecida, chama-a Lorena, uma garota imprevisível, e sente
que no conjunto daquelas imagens há algo, para além da moça, sobre o seu
passado que precisa ser solucionado e sente que Lorena é o único lugar onde ele
tem de ir (p.55)
O encontro com a
moça o faz aprofundar a crise em que se encontra e ele decide, por decisão sua
e da família, passar um fim de semana com Zopi, numa casa de praia para
descansar e compreender o que se passa com ele.
É naquele lugar
e numa casa velha, cheia de barulhos, morcegos, gatos, aranhas, presenças
fugidias, cabides que se mexem dentro do armário que vemos começar uma
deliciosa história de mistério e fantasmas no momento em que, no meio do quarto
aparece um escritor, chamado Gustavo e que escreve histórias de fantasmas, com
quem vamos conhecer o desenrolar de uma outra história evocada por uma frase
muito simples e doméstica: “- Se enganas a Lorena com Paula eu te mato,
Gustavo”, lembrando que o extraordinário sempre aparece de maneira
absolutamente ordinária.
Duas histórias
se entrelaçam, duas histórias que talvez sejam uma só, ou por outra, uma
história revelada que é, na verdade, o negativo da outra. Já que, como no
ritual da revelação das fotos, há uma inversão da percepção e do olhar, quando,
mesmo que tenhamos tirado as fotos, na hora da revelação é a imagem quem nos
vê.
Lorena, que
também é fotógrafa, mulher de Gustavo, um escritor mediano, nem tão bem
sucedido assim e que escreve histórias de terror e fantasmas, dão andamento ao
relato. O relato de uma emocionante história de amor, de um amor impossível,
como sói ser o dos fantasmas, nem tão diferentes dos da vida real, cheia de
projeções, lembranças, memórias, saudades e esquecimentos.
Rituais do jogo
do copo, numa casa de praia, lençóis sobre o espelho, os cabides agitados
dentro do armário, telefonemas misteriosos, espectros, vozes de outros tempos,
sonhos misturados às imagens das fotos, uma boneca sem roupa e sem cabelo e uma
revelação fazem parte da segunda metade do relato que nos elucida sobre a
existência de um pacto que era uma dívida. Quem são os verdadeiros mortos, e
quem são os fantasmas, e quem são os vivos, e o que é a realidade, afinal?
Alguns mortos não descansam porque tem dívidas a pagar, somos informados já no
final.
Sem contar o
ponto alto desta bela história de amor, e para que vocês comprem o livro que
acaba de ser traduzido para o português e para que o autor possa autografa-lo,
garanto a vocês que temos um final feliz.
“O natural e o
sobrenatural não são duas classes de substâncias distintas e estranhas, mas sim
uma e a mesma, que apenas ao ingressar em nosso entendimento se manifesta como
natureza”, cito da página 173, nos explica Gustavo o escritor que conta todo o
resto da história que eu acabo de omitir, num livro chamado Ectoplasma e que se transforma no
primeiro lugar irremovível da lista de best-sellers e que ganha o prêmio do Centro Argentino de Ficção e Fantasia,
como o melhor livro de fantasmas nacional e cujo slogan criado pelos editores
era “uma história quase real”.
O livro que
termina com considerações relativas às angústias do escritor agora famoso,
filia-se não só à linhagem da melhor literatura fantástica aqui já mencionada
mas a uma outra linhagem muito argentina, no que esta literatura faz, ao longo
dos séculos, como nenhuma outra:: uma profunda e irônica reflexão sobre a
escrita, sobre a criação e sobre a literatura.
Mas agora acho
que o Gustavo Nielsen vai nos contar coisas muito interessantes sobre a sua
experiência como escritor e sobre este belíssimo romance que eu recomendo com
entusiasmo.
Gustavo Nielsen,
seja bem-vindo e muito obrigada por nos brindar com o seu livro.
Obrigada a
todos.
[1] (…) Lo
fantástico y lo misterioso no son solamente las grandes imaginaciones del cine,
de la literatura, los cuentos y las novelas. Está presente en nosotros mismos,
en eso que es nuestra psiquis y que ni la ciencia, ni la filosofía consiguen
explicar más que de una manera primaria y rudimentaria.
[2]
(…) un sentimiento de estar inmerso en un misterio continuo, del cual el
mundo que estamos viviendo en este instante es solamente una parte, ese
sentimiento no tiene nada de sobrenatural, ni nada de extraordinario,
precisamente cuando se lo acepta como lo he hecho yo, con humildad, con
naturalidad, es entonces cuando se lo capta, se lo recibe multiplicadamente con
más fuerza; yo diría, aunque esto pueda escandalizar a espíritus positivos o
positivistas, yo diría que disciplinas como la ciencia o como la filosofía
están en los umbrales de la explicación de la realidad, pero no han explicado
toda la realidad, a medida que avanza en el campo filosófico o en el
científico, los misterios se van multiplicando, en nuestra vida interior es
exactamente lo mismo.
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